Original en Portugués
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Ana Filipa Guimarães
Psicóloga
Casa de Saúde Sao João de Deus. Barcelos (Portugal)
Nas últimas décadas tenho-me apercebido de uma mudança estrutural na forma como olhamos as pessoas com doença mental. Se até então o olhar recaía sobre a doença, muito pela “estranheza” que nos impunha a falta de conhecimento sobre a mesma, agora, com o avanço da ciência, com o contacto mais regular da comunidade com esta problemática, foi possível começarmos a ver para além do adoecer, para começarmos a ver a Pessoa. Com este alargar de horizontes, obviamente não chega tratar sintomas, e tem sido possível pensar, desenhar e implementar uma variedade de serviços e intervenções em todo o espectro biopsicossocial, com resultados efetivos ao nível da qualidade de vida. Entre estes serviços encontra-se o CuiDando, uma resposta de proximidade, no domicílio, que através de uma equipa multidisciplinar especializada em saúde mental, trabalha no modelo de gestão de caso, e promove a estabilidade clínica e a integração socioprofissional de pessoas com problemas de saúde mental.
O modelo de intervenção com base no gestor de caso coloca alguns desafios, logo à partida na definição de papeis e funções de cada técnico. No CuiDando, cada técnico tem uma formação de base distinta, o que impele que olhemos para a pessoa sob determinada lente. No entanto, o modelo preconiza que os profissionais sejam capazes de observar e avaliar de forma abrangente, identificando necessidades muito para além da formação de base. Ser gestor de caso em contexto domiciliário, deixa-nos numa posição privilegiada para conhecer a pessoa, de forma integral, naquele que é o seu contexto habitual. A intervenção que decorre em casa, promove um vínculo distinto, diria até mais próximo, entre técnico, beneficiário e pessoas significativas, nas diversas áreas de vida: gestão da saúde (física e mental); inclusão social (habitação, rendimentos, participação na comunidade); gestão familiar; ocupacional (estruturação de rotinas, emprego ou atividades úteis) e espiritual. Não será demais dizer, que a determinada altura somos efetivamente pessoas de referência em quem os beneficiários depositam a sua confiança, procurando o nosso apoio na resolução dos mais variados problemas, nem sempre relacionados com a saúde. Assim, muitas vezes sem outra rede de suporte, a equipa do CuiDando lança o primeiro fio de contato, que depois estende à comunidade.
Porém, a 08 de Março de 2020 o Instituto S. João de Deus – Barcelos e de seguida o país pararam. Como que um anúncio para a “guerra” que se avizinhava. O toque era para o recolhimento, para a reflexão sobre o que fazer e como agir para minimizar o impacto do que se sabia que estava para vir. Fazendo parte do grupo operativo responsável pelo desenho e operacionalização do plano de contingência interno para a Covid-19, havia uma consciência muito clara dos riscos. Na atuação do CuiDando, o risco era ainda maior. Se na Casa de Saúde gerimos os contactos e possíveis meios de contágio, nos domicílios dos beneficiários tal não era possível. Para além disso, havia o risco de nos tornarmos um veículo de contágio entre domicílios. Por outro lado, sabemos que a doença mental grave é altamente sensível ao stress. Se a população geral estava em pânico, certamente a ansiedade levaria a melhor e muito do que já havia sido conquistado, nos processos de reabilitação, ficaria também em causa. Contas feitas, consideramos que não seria seguro nesta fase de incerteza manter o serviço a funcionar da mesma forma, contudo não poderia acontecer o tal “distanciamento social” aconselhado nas primeiras semanas.
A angústia era muita, principalmente porque os elementos da equipa, desempenham funções também em unidades de utentes crónicos, pelo que qualquer passo incerto poderia colocar dezenas de pessoas frágeis em risco. Ainda nesta fase, a falta de material de proteção era uma realidade, o que tornava toda a situação ainda mais assustadora. O confronto com as nossas fragilidades era agora uma realidade. Nesta fase, revalido toda a minha admiração pelos Irmãos e profissionais de saúde que trabalham em condições bem distintas das que habitualmente possuímos. De forma ingénua, lembrava-me de todos aqueles que estavam ao serviço, durante a crise do Ébola, e como na altura olhávamos para isso como uma realidade tão distante.
A Hospitalidade, mais do que nunca, era a força motriz e o que norteava as nossas decisões, não só dentro de portas, mas também fora. Hospitalidade não apenas como “um simples acolhimento ao hóspede, mas antes como uma radical «inclusão» do hóspede no âmbito da própria roda de afazeres do hospedeiro, na sua tutela contra os inimigos, na sua proteção, no seu profundo respeito existencial, no cuidado da sua pessoa perante todas as possíveis necessidades.”
Era tempo de agir. Começamos por contactar os beneficiários para um exercício de psicoeducação, primeiro para desmistificar algumas ideias sobre este novo vírus, depois para transmitir estratégias que permitissem às pessoas manterem-se seguras. Percebemos, nestes contactos, que também as pessoas estariam com demasiado medo de nos receber, pelo que os contactos por telefone ou videochamada eram bem-vindos.
Com o material de proteção já disponível, foi possível aproximar o contato, nesta fase a meteorologia também ajudou. Começamos a fazer visitas no exterior das casas, com equipamento de proteção que trocávamos a cada visita. Na cabeça tocava o disco – “Não senta; não toca em nada nem em ninguém; mantém afastamento”. Sentia que a preparação da medicação, que acontecia em alguns casos, era sempre um momento delicado, nesse caso havia toque e depois ficava o: “E se…”. Ao longo do tempo e com a vacinação, aligeiramos medidas, mas ainda hoje usamos máscara. Há pessoas que reconheço pelo andar, pela expressão verbal, mas certamente se passar por elas na rua, sem máscara vou ter dificuldade em reconhecer o rosto. A pandemia tirou-nos algumas coisas é certo, mas não levou tudo. No CuiDando, conseguimos passar por isto sem perder uma vida para o vírus, sem internamentos agudos por descompensação. Sinto que saímos mais fortes e com uma perceção por parte dos beneficiários de que somos resposta e apoio nos momentos mais delicados. Acredito até que estes momentos de crise vieram reforçar o nosso sentido de missão e compromisso no – Fazer Bem, o Bem!